Com efeito, nunca antes na história do seu governo, o presidente desautorizara a sua colaboradora - ou qualquer outro deles - com palavras tão acintosas. Primeiro, ele a acusou de fazer um alarde comparável ao do portador de um ''''tumorzinho'''' que não espera a biópsia para se declarar canceroso. Horas depois, rebaixou o ''''tumorzinho'''' à ''''coceira'''' que, pelo desconforto que provoca, leva o paciente a se imaginar vítima de grave doença. Não obstante, como é do seu feitio, para agradar ao outro lado, Lula não deixou de considerar preocupante o aumento do desmate, advertindo que o governo não será tolerante com ''''essa gente'''' que derruba árvores ilegalmente. Até o mais distraído dos brasileiros, porém, terá percebido que o que Lula pensa verdadeiramente do problema estava no carão passado à ministra - e na sua solidariedade com o ''''parceiro'''' Blairo Maggi, o rei da soja que governa Mato Grosso, outro inimigo de Marina.
Tanto assim que, no encontro de terça-feira com o presidente francês Nicolas Sarkozy, na fronteira do Brasil com a Guiana, Lula fez questão de assinalar o seu distanciamento ''''daqueles que defendem a Amazônia como um santuário da humanidade''''. Afinal, argumentou, ''''do lado brasileiro moram 25 milhões de pessoas que querem trabalho, comer, ter carro e acesso aos bens produzidos''''. A seguir, para francês ver, tornou a recitar o lugar-comum sobre o desafio de desenvolver a região ''''levando em conta a questão ambiental''''. Ora, não é possível que o presidente não saiba que o retrato da Amazônia como um santuário é uma caricatura das preocupações dos ambientalistas e de todos quantos se alarmam, a justo título, com os efeitos do desflorestamento para a elevação dos níveis de gás carbônico na atmosfera, comprovadamente associada ao aquecimento global. A Amazônia, toda ela reserva ecológica intocável, é, hoje em dia, uma fantasia restrita às franjas radicais dos movimentos verdes - como tal, uma irrelevância.
Os estudiosos do ambiente que têm a cabeça no lugar e conhecimento da realidade amazônica já produziram pencas de estudos sobre a sua viável ocupação econômica diferenciada. Se fosse o caso, o presidente poderia aprender com cientistas brasileiros do quilate do físico José Goldemberg, por exemplo, quanto é simplória, além de irreal, a dicotomia entre a Amazônia santuário e a Amazônia aberta à exploração desbragada. Mas não é o caso. Para bom entendedor, a começar do que outrora se chamavam ''''classes produtoras'''', o que Lula efetivamente disse anteontem em Saint-Georges do Oiapoque é que ele não está nem aí para os riscos ecológicos da colonização cega da Amazônia.
Para que não paire dúvida sobre isso, no mesmo dia em que Lula profanava o santuário amazônico, seu ministro da Agricultura, Reinhold Stephanes, prometia aos produtores rurais, apontados como os grandes responsáveis pelo desmatamento, que não vai abandoná-los. ''''Ele concorda com as nossas posições e disse que o decreto tem de ser revisto'''', disse o vice-presidente da Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso, referindo-se ao Decreto 6.321 publicado no final de 2007, que, segundo ele, ''''na prática proíbe novos desmatamentos na Amazônia Legal''''.
Como sempre acontece nesse governo, em que um ministro não sabe o que o outro faz - como ele próprio já disse -, obrigado a decidir a luta entre dois ministros, Lula deu a vitória a Stephanes. Por pontos, por enquanto. (O Estadão)
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