terça-feira, 8 de maio de 2007

Bife aguado


Xico Graziano

Cuidado. Esses temerosos tempos de aquecimento climático provocam uma perigosa mistura de neurose ecológica com preconceito cultural. Basta ver o caso da pecuária. O coitado do boi está sendo esculachado. Seu arroto virou crime.

Verdade não se esconde. Do processo de ruminação, característico dos animais vegetarianos de duplo estômago, como os bovinos e ovinos, resulta a produção de gases. Quando arrotam, as vacas libertam metano, gás que é 23 vezes mais nocivo, quanto ao efeito estufa, que o dióxido de carbono.

Desgraçadamente, o feijão, entre outros alimentos, causa problema semelhante para humanos. O metano é subproduto da fermentação anaeróbica, quer dizer, aquela verificada na ausência de oxigênio. Estufou, precisa sair. Muitas rodas sociais já se prejudicaram por este desleixo da vida.

Até aí, tudo bem. Ocorre que, pela internet, circula a informação de que uma vaca pode arrotar até 500 litros de metano por dia. Haja atmosfera que agüente! Sabendo-se que o rebanho bovino mundial atinge 1,4 bilhão de cabeças, tal volúpia gasosa é altamente condenável. Morte às vacas!

Procurando solução amena, o cientista alemão Winfred Dochner criou uma pílula antiarroto para receitar aos bovinos. Tecnologia veterinária de última geração contra os gases. Chega a ser engraçado.

O assunto, porém, é muito sério. E enganoso. Os cálculos sobre as emissões de metano advindas dos rebanhos são pouco críveis. Geralmente meras suposições. Como poderia um animal expelir 500 litros de gás por dia, se ele, o bicho inteiro, ossos e músculos, geralmente, pesa menos que isso? Será possível arrotar mais que seu próprio volume?

Segundo dados divulgados pela Embrapa, um boi libera cerca de 60 quilos de metano, não por dia, mas a cada ano. Dariam perto de 30 gramas diários, bem longe daqueles assustadores 500 litros. Enorme diferença.

Contra o boi ou sua digníssima vaca, existe ainda forte polêmica sobre o custo ambiental de sua carne. O problema reside no consumo de água pelo rebanho. Segundo propagado, a produção de um quilo de carne bovina exige 15 mil litros de água. Fazendo as contas, uma pessoa que mastigue 200 gramas de carne estará contribuindo, por dia, para o consumo de 3 mil litros do precioso bem. Será verdade?

Claro que não. O antiecológico bife aguado é outro engodo do raciocínio, uma conta de bocó. Comprado barato por conhecidos formadores de opinião, o cálculo considera a quantidade total de água que um animal bebe em toda sua vida. Dividido pelo peso de abate, surge o número mentiroso. Onde está o erro?

No xixi do boi. É fato elementar que o bicho, por muito beber, urina várias vezes no dia, fartamente. Aliás, assim também procedem os humanos. Se a água ingerida fosse sempre armazenada, aquele número assustador estaria correto. Ocorre que, ao fazer pipi, o animal recicla a água no ambiente. Não gasta coisa nenhuma.

Entidades ambientalistas e até mesmo gente da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) entraram nessa onda de combater o desperdício de água culpando a agropecuária. Já fizeram a conta mostrando que a produção de um único hambúrguer exige tanta água quanto 40 banhos de chuveiro. Balela total.

Tais apocalípticos cálculos se esquecem da lei básica de Lavoisier: na natureza nada se perde, tudo se transforma. Confundindo a opinião pública com informações fantasiosas, pouco contribuem para equacionar os verdadeiros problemas da produção agropecuária. E são vários.

Parece que, aos ecologistas inocentes, falar mal do campo é mais fácil. Não fica estranho. A sociedade urbana tem sido contumaz no trato preconceituoso contra seus agricultores, como a querer renegar seu sofrido passado. Agora que a urbe paga os pecados do aquecimento global, volta sua culpa contra a pobre da vaca.

Ora, quem anda estragando as águas da Terra é a imundície urbano-industrial. E as elevadas emissões de carbono se devem à frenética civilização consumista, oposta à pacata vida rural. Botar a culpa no campo é como varrer a sujeira para debaixo do tapete. O raciocínio fácil, enviesado, todavia, permeia inclusive os cientistas de asfalto.

A maior prova disso se encontra nos atuais dados sobre emissão de gás carbônico. Afirmam os cientistas do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) que o desmatamento é responsável, no Brasil, por cerca de 70% das emissões nacionais dos gases estufa. As queimadas na Amazônia, portanto, sobrepujariam, de longe, as emissões urbanas. Estranho.

Cuidado, novamente, com o número. A metodologia do cálculo das emissões oriundas do desmatamento supõe que, numa certa área, toda a massa vegetal das árvores - madeira, galhos e folhas - seja queimada, fazendo subir aos céus a fumaça carregada com dióxido de enxofre. Pura hipótese.

Na prática, apenas pequena parte do volume derrubado da floresta arde no fogo. O restante, acima de 70%, representa exatamente a cobiçada madeira, que segue adiante para a construção civil e a movelaria do Centro-Sul do País ou embarca para o resto do mundo. Bem ou mal, esse cerne valioso significa carbono imobilizado. Na conta dos desavisados ecologistas, todavia, tudo virou fumaça.

Qualquer desflorestamento é condenável. Seguido de fogo, então, deve ser execrado. Mas é errado considerar que a agropecuária seja a maior responsável pela emissão dos gases estufa. Fazendo as contas corretas, são as emissões veiculares e as chaminés nas metrópoles as grandes culpadas pelo aquecimento do Planeta.

Ecologia não combina com ideologia.

Xico Graziano, agrônomo, foi presidente do Incra (1995) e secretário de Agricultura de São Paulo (1996-98).

O Estado de São Paulo

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