O debate sobre o meio ambiente e sobre o aquecimento global muitas vezes se ressente da interferência política e ideológica, que conduz à radicalização de posições, bem como da simplificação das questões essenciais para facilitar a compreensão do assunto. Sem falar dos estereótipos que se criam no imaginário público. Nesse sentido, é esclarecedor ouvir a voz do cientista e educador Nelio Bizzo sobre o tema.
Bizzo é biologo com doutorado em Educação e pós-doutorado na Universidade de Leeds (Inglaterra). Foi representante do Brasil no primeiro projeto educacional internacional sobre Mudanças Globais promovido pelo International Council of Scientific Unions (ICSU) na década de 1990, que produziu material didático utilizado em diversos países. Atualmente, é fellow da Society of Biology (Londres) e professor visitante da Universidade de Verona, na Itália, de onde concedeu a entrevista que segue.
UOL Ciência e Saúde: Pode-se dizer que a discussão sobre o meio ambiente ganhou mais peso nesta década em relação aos anos 1980 e 1990? Por quê?
Nelio Bizzo: É difícil responder a pergunta, mas eu diria que, se de fato a questão ambiental ganhou peso, isso se deve mais a uma oferta de novos produtos “verdes” do que propriamente a uma efetiva mudança da demanda dos cidadãos. Na Europa, onde tradicionalmente se troca pouco de carro, hoje se anunciam modelos híbridos com forte apelo ambiental (e que custam o dobro!). A indústria do macarrão na Itália faz propaganda de uma pirâmide alimentar ambiental, onde o macarrão com ovos demonstra ser, na verdade, “verde”. As bicicletas híbridas “inteligentes” têm motor elétrico de última geração (o Kers da Fórmula 1) e custam o mesmo que um automóvel, mas têm forte apelo ambiental. Muitos governos se oferecem para pagar parte do custo da bicicleta híbrida inteligente se o cidadão declarar que vai usá-la para trabalhar. Isso gera incentivos para a indústria de alta tecnologia local e, ao mesmo tempo, serve de justificativa de cumprimento dos acordos internacionais de redução de emissões.
UOL Ciência e Saúde: Nas discussões sobre as mudanças climáticas há duas vertentes básicas – os que veem o homem como principal causador do aquecimento global, e os negacionistas, que negam a influência humana nesse fenômeno. Especulações, como a realizada pelo IPCC, da ONU, sobre o derretimento precoce das geleiras do Himalaia, acabaram reforçando a opinião dos negacionistas. Como o senhor enxerga esse debate?
Nelio Bizzo: Não creio que os negacionistas tenham conseguido demonstrar má-fé dos membros do IPCC. O fato é que os que apontam o ser humano como causador das mudanças não formam um grupo homogêneo e coerente. Os ditos negacionistas tampouco formam um bloco único e não podem ser reduzidos a meros testas de ferro da indústria do petróleo. Há fortes interesses econômicos de um lado e de outro. Creio que há um polo muito dinâmico, representado pelos setores de alta tecnologia, que incentiva a ação ambiental, e que tem sido chamado de “neocapitalista”. O discurso ambiental está também presente em certos críticos do capitalismo, que denunciam a falsidade do discurso ambiental dos “neocapitalistas”, pois a lógica capitalista conduziria inexoravelmente ao apocalipse ou a algum tipo de catástrofe. Para eles o desenvolvimento econômico deve ser freado parcial ou totalmente, o que só seria possível com uma economia planificada. De outro lado, há os que exploram os erros ou os exageros do movimento ambientalista, seja com argumentos sólidos, seja com sofismas. De qualquer forma, depois de viver algum tempo na Europa, vejo que existe uma percepção generalizada da gravidade do problema ambiental e de que ele é real. Energia solar e eólica, veículos híbridos, economia de energia, incentivos fiscais ambientais etc. estão cada vez mais presentes nas conversas do dia a dia das pessoas.
UOL Ciência e Saúde: A sociedade industrial ou pós-industrial tornou-se dependente dos combustíveis fósseis. Pensando no médio prazo, quais as fontes de energia que podem substituí-los sem provocar outros danos ao meio ambiente?
Nelio Bizzo: O problema dos combustíveis fósseis é que eles liberam carbono que, de outra maneira, ficaria aprisionado no subsolo. Hoje não é possível continuarmos a ensinar no ensino médio o ciclo do carbono como se o petróleo não fosse intensamente queimado em todo planeta. Mas não podemos deixar de pensar que terremotos, sobretudo no fundo oceânico, liberam grandes quantidades de metano, 16 vezes mais potente do que o CO2 como agente do efeito estufa. A produção de matéria orgânica depende de nitrogênio e - o que pouco se fala – a indústria de fertilizantes tem muito a ver com os problemas ambientais atuais. Muito do metano que se evade para a atmosfera provém, em última análise, da matéria orgânica adicional originada da enorme quantidade de nitrogênio bioassimilável produzido pela indústria a partir do início do século 20. Enfim, não há um único “vilão” do ambiente e não se poderia apontar o carbono isoladamente como tal. Porém, como o carbono que se acumulou no subsolo ao longo de centenas de milhões de anos, sua liberação, e ainda mais, em ritmo acelerado, certamente traz grande impacto sobre os ecossistemas. Assim, pensa-se atualmente em combustíveis que não emitam gás carbônico ou que o assimilem em sua produção, como é o caso do etanol brasileiro. A energia nuclear volta a ser pensada seriamente, mesmo por aqueles que a combateram no passado, como é o caso de James Lovelock, uma pessoa que admiro muito. Ele faz parte de um grupo que acredita que a quantidade de energia necessária para a população atual não pode ser suprida por fontes limpas, como a solar e eólica. Esse grupo propõe a volta da energia nuclear, em centrais nucleares pequenas e seguras.
UOL Ciência e Saúde: É possível conciliar a necessidade de as empresas explorarem as riquezas naturais com a preservação do meio ambiente? E que vantagens as empresas podem ter, caso concordem em atuar tendo em vista a proteção do meio ambiente?
Nelio Bizzo: Os diferentes países sabem que têm potenciais econômicos distintos. Alguns se preparam para o futuro, outros sabem que não têm condição de fazer isso. Uma das grandes empresas de telefonia celular do Báltico era, no passado, uma empresa madeireira. Ela teve a ousadia de se preparar para enfrentar o futuro, diante da evidente limitação imposta pelo ambiente. A questão é se isso é possível em termos globais. Na prática, o que essa empresa fez foi deslocar a produção de celulose do norte do planeta para uma região mais meridional. Isso é o que discute hoje, ou seja: é possível que as empresas se tornem “verdes” em termos globais? Alguns dizem que não, pelo menos em termos da atual organização econômica capitalista. Outros acham que isso é possível. Eu particularmente acredito que apenas uma mudança radical no padrão de consumo permitirá uma mudança global e isso dependerá essencialmente da consciência do cidadão como consumidor e de um rearranjo das relações entre blocos de países.
UOL Ciência e Saúde: Que iniciativas mais contribuíram para a diminuição dos danos já causados ao meio ambiente?
Nelio Bizzo: Seria difícil fazer um ranking, mas creio que um dos acordos internacionais mais bem sucedidos tenha sido o Protocolo de Montreal, de 1987, no qual os países se comprometiam a reduzir dramaticamente o uso de gases que destroem a camada de ozônio. Ficou demonstrado que quando os países estão realmente dispostos a estabelecer e cumprir metas, isso é conseguido. Novamente, as pessoas tiveram que se conformar e ter aparelhos de ar condicionado mais caros e menos eficientes, em fazer mais força para nebulizar desodorantes e até abandonar certos dispositivos (como abridores de garrafa a base de freon), mas ficou demonstrado que é possível conciliar metas ambientais e padrões de produção e consumo globais. Devemos a uma série de cientistas, inclusive James Lovelock, o entendimento do que estava acontecendo no planeta. Assim como hoje, havia os negacionistas, que acreditavam que o aumento da radiação ultravioleta na superfície de nosso planeta era decorrente de uma simples mudança da emissão do Sol. Todavia, deveremos esperar até 2050 para ver se realmente funcionou. Aliás, o sucesso desse acordo é uma razão adicional para acelerar as tratativas para redução das emissões dos gases estufa, pois o fechamento do buraco de ozônio na Antártica diminuirá as correntes descendentes de ar superfrio da alta atmosfera, que explicam a razão daquela região sofrer menos os efeitos do aquecimento global do que o Polo Norte.
UOL Ciência e Saúde: No início da década, Al Gore por pouco não se elegeu presidente dos EUA. Sete anos depois, ele ganhou o Prêmio Nobel da Paz, por seu ativismo ambientalista. No Brasil, a candidata do Partido Verde, Marina Silva, teve expressiva votação na última eleição presidencial. Em 2010, na França, o PV também obteve votação significativa. Na Alemanha, o PV atingiu a maior popularidade de sua história. A que você atribui o sucesso dos “verdes” na década de 2010?
Nelio Bizzo: Não penso que seja um único fenômeno. Al Gore se desmoralizou diante da divulgação do dispêndio energético de sua mansão, e, ademais, não podemos nos esquecer que ele foi o autor da tese do “dumping social” dos países pobres, ao justificar o protecionismo econômico de seu país. O sucesso dos verdes na Europa tem mais a ver com o fracasso da esquerda, sobretudo na França. Marina Silva teve um sucesso inesperado, que surpreendeu a todos, mas ela não tinha condição de transferir votos, o que demonstra que seu eleitorado era pouco ligado à sua pessoa e suas ideias. Ela é muito carismática, pois tem um ar desarmado que é muito sedutor na política. Mas não sei se seu eleitorado sabe ao certo o que ela pensa. Eu mesmo nem acredito que ela seja criacionista e que pense seriamente que toda a biodiversidade da Amazônia estava dentro da arca de Noé!
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