quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Exterminando o lobo das mudanças climáticas, artigo de Martin Wolf

O alardeado sistema europeu de comercialização de direitos de emissão tem sido uma maneira de transferir quotas de renda para alguns grandes emissores

Martin Wolf é colunista do “Financial Times”. Artigo publicado no “Valor Econômico”:

A essência da história do menino que gritava "lobo" é que um dia, finalmente, um lobo acabou aparecendo. É também assim que me sinto em relação aos herdeiros intelectuais de Thomas Malthus. Os malthusianos finalmente encontraram um lobo denominado "mudança climática". Muita gente hoje concorda.

Mas o problema está muito distante e avizinha-se lentamente. "Se as piores previsões converterem-se em realidade", resmungam os ricos para si mesmos, "deixemos que nosso filhos e netos enfrentem o problema".

Essa é a complacência atacada no mais recente Relatório de Desenvolvimento Humano, do Programa de Desenvolvimento da ONU. E trata-se de um documento bem elaborado. Mas, será ele suficientemente bom para transformar a conferência sobre mudanças climáticas em Bali numa conclamação para ações efetivas? Receio que não.

Mas não porque do documento esteja ausente uma argumentação moralmente bem fundamentada. E, sim, porque a humanidade modificará seu comportamento somente quando estiver convencida de que o estilo de vida de que desfrutam hoje os mais ricos - e ao qual aspira o resto do mundo - permanecerá a seu alcance.

Essa visão cínica sobre o comportamento humano é plenamente coerente com o que aconteceu até agora. Pois é como se não houvesse Protocolo de Kyoto. Será esse veredicto demasiado severo?

Consideremos apenas alguns dos muitos fatos contidos no relatório: as concentrações atmosféricas de dióxido de carbono continuam a crescer a uma taxa de 1,9 parte por milhão ao ano; ao longo dos últimos 10 anos, a taxa de crescimento anual das emissões foi 30% mais rápida do que a média nos últimos 40 anos; se a taxa de emissões crescer segundo as tendências atuais, em torno de 2035 os estoques de CO2 na atmosfera poderão equivaler ao dobro dos níveis da era pré-industrial; e isso, sustenta o Comissão Internacional sobre Mudanças Climáticas, resultaria em um provável aumento de temperatura de 3°C, embora aumentos acima de 4,5°C não possam ser descartados.

Se os argumentos científicos estiverem corretos, o mundo está fadado a sofrer substanciais mudanças climáticas.

O relatório especifica um aumento de 2°C na temperatura como o limiar de "perigosa mudança climática". Esse teto implica cortes draconianos nas emissões: "Se o mundo fosse um só país, precisaria ter reduzido as emissões de gases causadores do efeito estufa à metade em torno de 2050, em comparação com os níveis registrados em 1990. Mas o mundo não é feito de apenas um país.

Partindo de premissas plausíveis, estimamos que evitar mudanças climáticas perigosas exigirá que os países ricos reduzam suas emissões em pelo menos 80%, com cortes de 30% em torno de 2020. As emissões dos países em desenvolvimento atingiriam um pico em torno de 2020, com cortes de 20% em torno de 2050".

O único argumento a favor do americano George W. Bush, ou do australiano John Howard, é que eles não foram hipócritas. Pois o aspecto mais saliente da maioria dos compromissos assumidos foi, até agora, seu descumprimento.

O muito alardeado sistema europeu de comercialização de direitos de emissão tem sido, predominantemente, uma maneira de transferir quotas de renda para alguns grandes emissores, e não um meio efetivo de controle das emissões. O governo britânico, por exemplo, foi suficientemente honesto em admitir que grandes geradoras de eletricidade obtiveram 1,2 bilhão de libras em quota de rendas apenas referentes a 2005.

Poderá o mundo, no futuro, fazer maiores progressos nessa área? Sim, mas será difícil. Para que possamos compreender o porquê, precisamos enfrentar o fato de que o mundo está muito longe de ser um único país. Isso cria três enormes problemas: (in)ação coletiva, percepção de injustiça e indiferença. Em primeiro lugar, não apenas cada país quer pegar carona gratuitamente nos esforços dos outros, como nenhum deles sente-se inteiramente responsável pelas conseqüências.

Segundo, as contribuições dos diferentes países para o problema foram (e continuam sendo) enormemente distintas. Coletivamente, os país ricos respondem por sete de cada dez toneladas de CO2 emitidas desde o início da era industrial. Embora a China seja a maior emissora no mundo, suas emissões são ainda apenas 20% do nível per capita nos EUA. No caso da Índia, o percentual é de apenas 7%.

Terceiro, como explicita o relatório em persuasivo detalhamento, os maiores custos serão pagos pelos pobres. Entre as mais assustadoras conseqüências estão as relacionadas com chuvas e geleiras: a escassez de água poderá tornar-se um problema grave em grandes áreas do mundo. Povos pobres têm muito menores condições de enfrentar os desastres decorrentes de condições climáticas do que os ricos.

Mas é essa, se formos honestos, a razão da improbabilidade de os ricos implementarem os enormes cortes de emissões exigidos pelo relatório. Os poderosos continuarão a agir sem muita consideração para com os pobres. Este, afinal de contas, é um mundo que gasta dez vezes mais com defesa (em grande parte inútil) do que em ajuda aos países pobres.

Como poderia isso mudar? A resposta é que precisamos apelar, pelo menos em igual medida, tanto ao auto-interesse das pessoas quanto à sua moralidade. Sim, temos uma obrigação moral de considerar tanto os pobres como as gerações futuras.

Sim, o fato de que as mudanças na composição da atmosfera são, para todas as finalidades e propósitos, irreversíveis, torna essencial ações imediatas e eficazes. Mas a aceitação desses argumentos não será suficiente para produzir ações significativas, em vez de aspirações pias e muito fingimento. Um bom exemplo desse tipo de mentirinhas é afirmar ser suficiente reduzir a intensidade de carbono nas emissões. Infelizmente, não é assim, a menos que a redução seja, de fato, muito grande.

Duas coisas são necessárias. A primeira é prova convincente de que os verdadeiros riscos são maiores do que muita gente hoje supõe. Possíveis efeitos realimentadores poderão, por exemplo, produzir aumentos de temperatura de 20°C. Isso seria o fim do mundo como o conhecemos. Não posso imaginar uma pessoa racional que não busque anular até mesmo a possibilidade de tais conseqüências. Mas, se vamos fazê-lo, precisamos também agir muito rapidamente.

O segundo requisito é comprovar ser possível que continuemos nos desenvolvendo na presença de emissões com baixo teor de carbono. As pessoas no Hemisfério Norte não preferirão passar frio hoje para evitar que o mundo esquente demais no futuro. E a China e a Índia não abrirão mão de seu desenvolvimento. Essas são realidades que não podem ser ignoradas.

O relatório da UNDP argumenta que o futuro com baixo teor de carbono que defende poderia ser assegurado a um custo de 1,6% da produção mundial entre hoje e 2030. Esses número redondos parecem sedutoramente modestos.

Mas a pergunta que as pessoas continuarão a se fazer é o que isso poderia significar para seus próprios padrões de vida. Os defensores de mudança terão de persuadir as pessoas de que viver em uma economia gerando baixos teores de carbono não significa desistir de tudo o que desfrutam. Ainda que finjam sofrer, as pessoas não precisarão se penitenciar.

Em suma, para que tolerem mudanças radicais em consumo de energia, as pessoas precisarão, primeiro, ficar assustadas, para que depois lhes seja oferecida uma boa saída.

A verdade, além disso, é que esse cenário poderá ser concretizado apenas se os EUA também assumirem a liderança. Nenhum país fará cortes radicais se os EUA não o fizerem. Não acontecerão avanços científicos e tecnológicos se os EUA não estiverem dispostos a comprometer seus recursos visando esse objetivo.

Os EUA já não podem mais esperar uma liderança de outros países. Ou os americanos assumem a liderança agora, ou a causa, com toda probabilidade, será perdida. Nossos filhos e netos então descobrirão se o lobo era de verdade ou mentirinha.
(Valor Econômico, 5/12)

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