quarta-feira, 2 de maio de 2007

O aquecimento global mudou de platéia



Marcos Sá Correa*

Um sinal de que a mudança climática está ganhando público é que, ultimamente, ela freqüenta as páginas da London Review of Books. Às vezes, até em dose dupla, como aconteceu na edição em que John Lanchester resenha, ao mesmo tempo, cinco livros sobre aquecimento global e, 39 páginas após, Michael Byers narra sua descoberta do Ártico a bordo do Amudsen, um quebra-gelo canadense convertido em navio de pesquisa.

A primavera, conta Byers, ia alta. Faltavam dois meses para o verão. E nada de gelo na proa do Amundsen. Em troca, os pesquisadores encontraram baleias Beluga contaminadas com teores de mercúrio tão exagerados, que só a poluição industrial do planeta não bastava para justificá-los. Eles suspeitam que o mercúrio aflore naquelas latitudes dos solos que degelam. No golfo da Rainha Maud, quinhentos e tantos além do Círculo Polar, seu primeiro contato com a fauna local foi um urso esquálido, caminhando sobre um gelo tão fino que afundava sob o peso de suas patas traseiras. Aquele, pelo menos, vencera o inverno e, em princípio, estava de volta à caçada de focas. “Mais ao sul, onde a temporada sem gelo é ainda mais longa, eles têm menos sorte”, segundo Byers. O que liga os ursos às focas é o gelo. E o gelo está encolhendo, nesta década, à razão de 300 km2 por ano.

Byers não foi até lá para carpir os ursos. Como os bichos, as tribos Inuit sempre contaram com o frio da primavera. Solidificando as águas rasas da bacia de Foxe, eram as temperaturas abaixo de zero que lhes franqueavam o acesso às manadas de caribus da ilha de Baffin. Sem elas, os Inuit passaram a discutir, nas reuniões de conselho, se não estaria na hora de fretar aviões para ir à caça de caribus. Os velhos costumes pedem reforços tecnológicos para sobreviver num planeta cada vez menos previsível.

Não adianta dizer que esse é um típico problema dos Inuit. A climatologia promete verões em barcos sem cascos reforçados para costear o Ártico, do Atlântico ao Pacífico, pela rota que engolia aventureiros desde o século 16. O explorador Roald Amundsen levou três anos para completar a travessia pela primeira vez, em 1906. Pagou dois invernos como prisioneiro do mar congelado.

Cem anos depois - no barco que tem o nome de Amundsen - Byers pôde antever o mundo no dia em que “um marinheiro tarimbado puder levar um petroleiro” através daqueles estreitos. Quando isso ocorrer, provavelmente até 2015, mudarão mais rotinas que as dos ursos e Inuits. Estará aberto alguns meses por ano um atalho para a Ásia 6,5 mil km mais curto que o Canal do Panamá. Deverá atrair sucatas flutuantes de bandeira liberiana, que topam qualquer parada.

Com esse tipo de comerciante, é grande o risco de que os cargueiros sujem, com seus tanques de lastro, os golfos intactos do Ártico. E essa região desguarnecida virará uma mão na roda do leme para o contrabando, o tráfico de imigrantes e, quem sabe, terroristas. Já se discute quem controlará as rotas. Os EUA alegam que se trata de “estreito internacional”. O Canadá, dono desde 1880 das ilhas que o margeiam, alega que as águas são “internas”. Há um mundo novo saindo do gelo, como não se via desde que acabou a era das grandes navegações. Suas implicações políticas dão obra para ocupar os diplomatas pelas próximas décadas. “Mas, depois de ver o outubro sem gelo, para mim é claro que não temos mais tempo a perder”, concluiu Byers. Quem disse que aquecimento global é conversa de ambientalista?

*Jornalista e editor do site O Eco


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