quinta-feira, 26 de abril de 2007

Uma injustiça do tamanho do mundo

Roberto Elísio (*)


OS EUA e a Europa respondem por dois terços dos gases causadores da mudança climática, enquanto os 840 milhões de africanos mal atingem 3%. Em compensação, as secas e inundações decorrentes do aumento da temperatura castigarão muito mais os africanos, inocentes de culpa, do que os ocidentais, vilões históricos do aquecimento global, desde que a Revolução Industrial desencadeou o processo, dois séculos e meio atrás.

Ninguém é insensível a disparidade tão monstruosa entre causa e efeito. É sugestivo, porém, como a nacionalidade ou a classe fazem ver coisas diferentes ao olharem para o mesmo fenômeno. Para um intelectual da conservadora Hoover Institution, ouvido por jornal norte-americano, é como o naufrágio do Titanic. A natureza não seria democrática: os imigrantes da 3ª classe dos porões do navio têm chance muito menor de se salvarem do que os passageiros da 1ª, no convés de cima.

A comparação é duplamente pérfida, ao insinuar não só que a culpa é da natureza, não dos homens, mas ao acentuar, de lambuja, que também as diferenças de classe e riqueza são uma fatalidade "natural". Já o presidente de Uganda, ao discursar em reunião da União Africana, sustenta que a África está sendo vítima de uma "agressão global". É a única descrição que se ajustaria a processo humano pelo qual o Alasca e a Sibéria se tornariam talvez aptas à agricultura, às custas de acelerar a desertificação da África. Quem tem mais razão é o africano.

O flagelo que nos assola não é uma cega catástrofe da natureza, como a queda de meteorito que não se pode evitar ou desviar. Trata-se de alteração ocasionada pela ação humana, a primeira vez em que os homens se tornaram capazes de afetar o que parecia fora do alcance de nossas forças, a atmosfera e o clima. Aí se encontra o caráter único do processo, a marca humana que permite falar em injustiça e não em fatalidade.

Não surpreende por isso que o governo dos EUA, responsáveis por mais de 30% das emissões, tenha teimado tanto em negar a evidência científica de que a mudança do clima não se devia a causas naturais, mas sim a humanas. Reconhecer que a alteração é causada por homens e por alguns, mais que outros, é ter de admitir o princípio da "responsabilidade diferenciada", consagrada na Convenção sobre Mudança Climática. É, portanto, direito internacional positivo, que não se pode discutir nem negar. Da mesma forma, o compromisso assumido pelos signatários da Convenção (também os EUA) de ajudarem os mais vulneráveis com os custos da adaptação é questão de justiça, não só de solidariedade.

Assim como a paz, a justiça e a solidariedade serão indivisíveis ou não serão nada. Isto é, não podem ser parciais, discriminatórias, egoisticamente seletivas. O governo americano, por exemplo, espera solidariedade de todos na luta contra o terrorismo internacional que o ameaça. Ao mesmo tempo, recusa limitar as emissões de gases, contribuindo para apressar o desaparecimento físico de ilhas do Pacífico ou regiões de Bangladesh, povoadas por centenas de milhões de pessoas.

A agenda internacional é injusta, estúpida e ilegítima, pois privilegia o terrorismo, a proliferação de armas (apenas de alguns), o Iraque, o Irã, e relega a tratamento secundário a mãe de todas as ameaças, a que afeta o planeta inteiro, até mesmo os ricos. Os britânicos admitiram sua responsabilidade histórica e estão dando um exemplo ao mundo. É uma tragédia que, nesse ponto, talvez tenham tão pouca influência sobre seus aliados americanos.

Mas os EUA não são os únicos em dívida com a Terra. O Brasil, apesar do etanol e de equação energética mais limpa, é réu de culpa tríplice: pelas queimadas na Amazônia, 4ª ou 5ª maior fonte de gases estufa; pela destruição das matas ciliares e desrespeito aos 20% da reserva legal de Mata Atlântica em muitos canaviais; por sistema desumano que obriga 200 mil colhedores de cana à exaustão, chegando às vezes à morte, a fim de alcançarem paga condigna. Nessa injustiça do tamanho do planeta, o Brasil é vilão e vítima. Tem de fazer sua parte pois, como dizia Chesterton, do pecado original:

"estamos todos no mesmo barco e todos com enjôo".

(*) Diretor da Faculdade de Economia da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda (governo Itamar Franco). Escreve quinzenalmente, aos domingos, nesta coluna.

Hoje em Dia – MG

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