quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Depois do Gelo

Livro de Steven Mithen, Imago, 677 páginas, R$ 110. Leia o primeiro capítulo

O Nascimento da História
Aquecimento global, indícios arqueológicos e história humana

A história humana começou em 50000 a.C. ou por aí. Talvez 100000 a.C., mas certamente não antes. A evolução humana tem um pedigree bem mais longo — pelo menos 3 bilhões de anos se passaram desde a origem da vida, e 6 milhões desde que nossa linhagem se cindiu à do chimpanzé. A história, desenvolvimento cumulativo de fatos e conhecimento, é assunto recente e surpreendentemente curta. Pouca coisa de importância aconteceu até 20000 a.C.—as pessoas apenas continuaram vivendo como caçadores-coletores, exatamente como vinham fazendo seus ancestrais por milhões de anos. Viviam em pequenas comunidades e jamais permaneciam muito tempo em um assentamento. Pintaram-se algumas paredes de cavernas e fizeram-se algumas armas de caça mais ou menos excelentes; mas não houve fatos que influenciassem o curso da história futura, que criassem o mundo moderno.

Então vieram uns espantosos 15 mil anos que testemunharam a origem da agricultura, das cidades e da civilização.1 Em 5000 a.C., as fundações do mundo moderno já se haviam estabelecido, e nada do que veio depois—a Grécia clássica, a Revolução Industrial, a era atômica, a Internet — jamais se igualou ao significado desses fatos. Se 50000 a.C. assinalou o nascimento da história, 20000-5000 a.C. foi a sua maioridade. Para que a história começasse, as pessoas precisavam da mente moderna— uma mente bem diferente da de qualquer ancestral humano ou de outras espécies hoje vivas. É uma mente com poderes de imaginação, curiosidade e invenção aparentemente ilimitados. A história de suas origens é a que contei — ou pelo menos tentei contar — em meu livro The Prehistory of the Mind [A Préhistória da Mente], de 1996.3 Se a teoria que propus — de que múltiplas inteligências especializadas se fundiram para criar uma mente “cognitivamente fluida” — é inteiramente correta, errada ou alguma coisa intermediária, isso não constitui problema para a história que vou contar agora. O leitor tem apenas de aceitar que há 50 mil anos evoluiu uma mente singularmente criativa. Este livro trata de uma questão simples: que aconteceu depois?

O auge da última era do gelo ocorreu por volta de 20000 a.C. e é conhecido como o último máximo glacial, ou LGM (na sigla inglesa).4 Antes dessa data, as pessoas eram escassas na Terra e lutavam com um clima em deterioração. Sutis mudanças na órbita do planeta em redor do Sol haviam feito com que enormes camadas de gelo se expandissem por grande parte da América do Norte, norte da Europa e Ásia.5 O planeta foi inundado pela seca; o nível do mar baixara, deixando à mostra vastas planícies costeiras, muitas vezes estéreis. As comunidades humanas sobreviveram às mais severas condições retirando-se para refúgios onde ainda se podiam encontrar lenha e alimentos. Logo após 20000 a.C., começou o aquecimento global. Inicialmente, foi meio lento e desigual — muitas pequenas subidas e descidas na temperatura e chuva. Em 15000 a.C., as grandes camadas de gelo começaram a derreter-se; em 12000 a.C., o clima começara a flutuar, com impressionantes ondas de calor e chuva seguidas por súbitos retornos de frio e seca. Logo depois de 10000 a.C., houve um assombroso surto de aquecimento global que pôs fim à era do gelo e introduziu o mundo do Holoceno, em que vivemos hoje. Foi durante esses 10 mil anos de aquecimento global e seu resultado imediato que o curso da história humana mudou.

Em 5000 a.C., muita gente em todo o mundo vivia da agricultura. Novos tipos de animais e plantas — espécies domesticadas — haviam aparecido; os camponeses habitavam aldeias e cidadezinhas permanentes, e sustentavam artesãos especializados, sacerdotes e chefes. Na verdade, pouco diferiam de nós; cruzara-se o Rubicão da história—de um estilo de vida de caça e coleta para o da agricultura. Os que continuaram como caçadores-coletores também viviam de maneira bastante diferente da de seus ancestrais no LGM. O objetivo desta história é examinar como e por que ocorreram tais fatos — se levaram à agricultura ou a novos tipos de caça e coleta. É uma história global, de todas as pessoas que viviam no planeta Terra entre 20000 e 5000 a.C.

Não foi a primeira vez que o planeta passou por um aquecimento global. Nossos ancestrais e parentes—o Homo erectus, H. heidelbergensis e o H. neanderthalensis da evolução humana—haviam atravessado períodos equivalentes de mudança de clima quando o planeta ia e vinha de eras de gelo a cada 100 mil anos.
Eles reagiam fazendo em grande parte o mesmo que sempre haviam feito: as populações expandiam-se e contraíam-se, adaptavam-se a ambientes diferentes e ajustavam as ferramentas que fabricavam. Em vez de criarem história, simplesmente empenhavam-se numa interminável ronda de adaptação e readaptação a seu mundo instável. Tampouco foi a última. No início do século XX d.C., o aquecimento global começou de novo e hoje continua à toda. Mais uma vez, criam-se novos tipos de plantas e animais, desta vez por meio de engenharia genética intencional. Como esses novos organismos, nosso atual aquecimento global é um produto apenas da atividade humana — queima de combustíveis fósseis e desflorestamento em massa. Isso aumentou a extensão de gases de estufa na atmosfera e pode elevar as temperaturas globais muito além do que poderia fazer a natureza sozinha.

Os futuros impactos de um novo aquecimento global e organismos geneticamente modificados em nosso ambiente e sociedade são inteiramente desconhecidos. Um dia, se escreverá uma história de nossos tempos futuros para substituir a multidão de especulações e previsões com as quais nos debatemos hoje. Mas antes disso temos de ter uma história do passado. As pessoas que viveram entre 20000 e 5000 a.C. não deixaram cartas nem diários descrevendo suas vidas e os fatos que geravam e testemunhavam. Era preciso que houvesse cidades, comércio e artesãos para que ocorresse a invenção da escrita. Assim, em vez de usar registros escritos, esta história examina o lixo que as pessoas deixaram para trás — pessoas cujos nomes e identidades jamais serão conhecidos. Nossa história se apóia em instrumentos de pedra, vasos de cerâmica, detritos de alimentos, moradas abandonadas e muitos outros objetos de estudo arqueológico, como monumentos, túmulos e arte rupestre. Usa indícios de mudança ambiental passada, como grãos de pólen e asas de besouro presos em antigos sedimentos. De vez em quando, ganha alguma ajuda do mundo moderno, porque os genes que trazemos e as línguas que falamos podem
nos falar do passado.

O risco de ter de depender de tais indícios é que a história resultante pode tornar-se pouco mais que um catálogo de artefatos, um compêndio de sítios arqueológicos ou uma sucessão de “culturas” espúrias.9 História mais acessível e atraente é a que oferece uma narrativa sobre as vidas das pessoas; que trata da experiência de viver no passado e reconhece a ação humana como causa de mudança econômica e social.10 Para conseguir tal história, este livro conduz alguém dos tempos modernos aos pré-históricos: alguém para ver os instrumentos de pedra sendo feitos, os fogos ardendo nos lares e as moradas ocupadas; alguém para visitar as paisagens do mundo da era do gelo e vê-las mudar.

Escolhi um rapaz chamado John Lubbock para essa tarefa. Ele visitará cada um dos continentes, começando no oeste da Ásia e seguindo pelo mundo afora: Europa, as Américas, Austrália, leste da Ásia, sul da Ásia e África. Viajará da mesma forma como os arqueólogos escavam—vendo os mais íntimos detalhes das vidas das pessoas, mas incapaz de fazer qualquer pergunta e com sua presença inteiramente desconhecida. Farei comentários para explicar como os sítios arqueológicos foram descobertos, escavados e estudados; as formas como contribuem para nossa compreensão de como surgiram a agricultura, as cidades e a civilização.

Quem é John Lubbock? Ele vive em minha imaginação como um rapaz interessado no passado e com medo do futuro — não o seu próprio, mas o do planeta Terra. Tem o mesmo nome de um polímata vitoriano que, em 1865, publicou seu próprio livro sobre o passado e intitulou-o Prehistoric Times [Tempos pré-históricos]. O John Lubbock vitoriano (1834-1913) era vizinho, amigo e seguidor de Charles Darwin. Foi um banqueiro que instigou reformas financeiras-chave, um membro liberal do Parlamento que apresentou a primeira legislação para proteção de monumentos antigos e férias em bancos (públicos), um botânico e entomologista com muitas publicações científicas em seu nome. Prehistoric Times tornou-se um livro didático padrão e best-seller, com a sétima e final edição publicada em 1913. Foi uma obra pioneira, uma das primeiras a rejeitar a cronologia bíblica que dizia que o mundo teria uns meros 6 mil anos: introduziu os termos paleolítico e neolítico, Velha e Nova Idades da Pedra, hoje reconhecidas como períodos-chave do passado pré-histórico.

Mas as intuições do John Lubbock histórico eram igualadas por uma pavorosa ignorância. Ele pouco sabia da data e duração da Idade da Pedra: seus indícios de estilos de vida e ambientes antigos eram escassos: jamais ouvira falar de Lascaux, da Jericó pré-histórica e de inúmeros outros sítios hoje conhecidos como marcos milenares do passado humano. Quando planejava este livro, pensei em mandar o John Lubbock vitoriano a tais sítios, como gratidão por ele ter escrito Prehistoric Times. Mas o tempo dele passou; mesmo com a experiência de Lascaux e Jericó, julguei improvável que abandonasse a atitude vitoriana padrão de que todos os caçadores-coletores eram selvagens com mentes de criança.

Um beneficiário mais adequado de uma viagem pré-histórica é alguém que ainda não deixou sua marca no mundo. E assim vou mandar um John Lubbock dos dias de hoje para os tempos pré-históricos, levando um exemplar do livro de seu xará. Lendo-o em remotos cantos do mundo, ele apreciará tanto os feitos do John Lubbock vitoriano quanto o notável progresso que os arqueólogos fizeram desde a publicação de Prehistoric Times menos de 150 anos atrás. Uso John Lubbock para assegurar que esta história é mais sobre vidas de pessoas que apenas os objetos que os arqueólogos encontram. Meus próprios olhos não podem escapar do presente. Sou incapaz de ver além dos descartados instrumentos de pedra e detritos de alimentos, das ruínas de casas vazias e lareiras frias ao toque. Embora as escavações ofereçam portas para outras culturas, essas portas só podem ser entreabertas à força, jamais atravessadas. Posso, porém, usar a imaginação e espremer John Lubbock por entre as frestas, para que ele veja o que é negado a meus olhos, e tornar-se o que o escritor de narrativas de viagem Paul Theroux descreveu como um “estranho em terra estranha”.

Theroux escrevia sobre seu desejo de experimentar a “alteridade até o limite”; o fato de tornar-se um estranho permitia-lhe descobrir quem era e o que representava. É isso que a arqueologia pode fazer por todos nós hoje. À medida que a globalização conduz a uma delicada homogeneidade cultural em todo o mundo, a viagem imaginativa a tempos pré-históricos talvez seja a única forma de podermos agora obter essa extrema alteridade por meio da qual nos reconhecermos. E foi a única forma que encontrei de traduzir os indícios arqueológicos no tipo de história humana que desejo escrever. Quando olho as moradas desertas descobertas por minhas escavações, muitas vezes partilho os pensamentos de outro grande escritor de narrativas de viagem, Wilfred Thesiger. Em 1951, ele viveu com os árabes do pântano do sul do Iraque. Ao voltar lá no ano seguinte, chegou ao amanhecer e viu os vastos capões de juncos silhuetados contra o nascer do Sol. Lembrou a primeira visita — as canoas nos ribeirões, o grasnar dos gansos, casas vermelhas construídas sobre a água, os búfalos molhados, meninos cantando na escuridão, o coaxar das rãs. “Uma vez mais senti”, escreveu depois, “o anseio de partilhar aquela vida, e ser mais que um mero espectador.”

As técnicas da arqueologia possibilitaram-nos tornar-nos espectadores da vida pré-histórica — embora através de lentes embaçadas. Como Thesiger, anseio por ir além: experimentar a própria vida pré-histórica, e usar essa experiência para escrever história humana. Thesiger podia partir em sua canoa; tenho apenas a imaginação, informada por um meticuloso e exaustivo estudo de indícios arqueológicos. E assim, nas páginas deste livro, Lubbock realiza meu desejo de tornar-me mais que um mero espectador. Por meio dele, torno-me igual a Theroux e Thesiger, um estranho viajando por terras estranhas — no meu caso, as dos tempos pré-históricos.

Fonte: http://super.abril.com.br/revista/245/materia_revista_257859.shtml?pagina=2

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