sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Minha parcela no desmatamento, a sua e a do Crea

Glauber Pinheiro (*)

A conservação dos ecossistemas florestais brasileiros, e a diminuição nos índices de desmatamento devem ser compromissos de toda sociedade. Não apenas dos órgãos públicos ambientais, mas de cada cidadão. É óbvio o papel do órgão de defesa ambiental, no controle, no licenciamento das atividades de potencial impacto ao meio ambiente, e principalmente na fiscalização. A ausência ou a ineficácia destas ações é facilmente detectada pela população, que assim credita toda a responsabilidade à esta realidade.

Não é tão simples assim. É fato que a incompetência e morosidade dos órgãos ambientais desagrada tanto aos que defendem a preservação integral dos ecossistemas florestais, quanto aos que pretendem explorá-lo ou convertê-lo para outra finalidade em consonância com todos os ritos da lei. Entretanto, também temos a nossa parcela de responsabilidade. Primeiramente, precisamos entender que o desmatamento é promovido para atender à alguma “necessidade” humana, basicamente ligada à exploração de recursos florestais, sobretudo a madeira, ou à conversão de áreas para outros fins.

O desmatamento gera produtos, e enquanto houver mercado para estes produtos, será difícil coibi-lo. 85% da madeira que sai da Amazônia é para abastecer o mercado interno, e 90% desta é ilegal. Tendo isto claro, podemos verificar qual a parcela de responsabilidade da sociedade e de outros órgãos, que não somente aqueles diretamente vinculados à proteção do meio ambiente.

Cabe a cada indivíduo exercer seu dever de cidadão sendo um consumidor consciente, cabe aos empresários banirem a matéria-prima ilegal nos processos produtivos, cabe aos veículos de comunicação uma abordagem séria sobre o tema, cabe à todos os órgãos governamentais e organizações da sociedade civil incluírem esta problemática em suas pautas. O INCRA, o DNER, os órgãos de desenvolvimento, de obras públicas, de geração de energia, as federações das indústrias e do comércio, entre outros. Todos têm papel fundamental no combate ao desmatamento, sem que para isso precisem desviar um milímetro sequer de suas atribuições e finalidades.

A exploração florestal, por exemplo, deve ser executada por um profissional com conhecimento técnico-científico que permita a sustentabilidade da atividade. Como profissional da área, conhecedor de toda a cadeia produtiva e do mercado, terá plenas condições para aplicar a exploração seletiva, técnicas de impacto reduzido e de melhor aproveitamento, de transporte adequado, de obtenção de preços mais atrativos, e obrigatoriamente deverá conhecer toda a legislação pertinente a atividade. Segundo a Lei 6.496/77, para execução desta atividade deve ser feita uma Anotação de Responsabilidade Técnica – ART, por profissional devidamente habilitado conforme a Lei 5.194/66. Fiscalizar para garantir à sociedade que o empreendimento tenha este responsável técnico é um dever do Crea.

“Mas os Creas possuem satélites, helicópteros, e agentes para fiscalizar esta atividade praticada por perigosos criminosos lá no interior da Amazônia?” É a primeira pergunta que vem a mente do leitor, e eu respondo que não tem, mas também digo que não precisa. Não é este tipo de ação que esperamos do órgão. Entretanto, os cortes de vegetação legalizados, ou seja, com a autorização do IBAMA, muitas vezes também não contam com Responsável Técnico, e os Creas não adotam nenhuma medida junto ao órgão para que seja cumprida esta exigência legal, a qual lhes cabe fiscalizar e fazer cumprir.

Aqui eu preciso abrir parênteses para dizer que, ao contrário, os Creas permitem que os próprios órgãos ambientais atuem com profissionais genéricos, exercendo atividades que nem sempre condizem com suas atribuições. Certa vez uma amiga minha, Engenheira Florestal realizando um trabalho de reflorestamento, foi visitada por técnicos do órgão estadual e recebeu um parecer com recomendações completamente equivocadas, que haviam sido elaboradas por profissional com formação totalmente estranha a atividade em questão, e que criticava as técnicas silviculturais adotadas acertadamente pela colega.

Mas retornando ao assunto, a madeira proveniente dos desmatamentos ilegais segue diretamente para as serrarias, para as indústrias, ou para a geração de energia. Empreendimentos que também necessitam de responsável técnico, da respectiva ART, e que muitas vezes já é visitado pela fiscalização do Crea para verificar a presença de profissionais em outras especialidades, como por exemplo, nas obras da engenharia civil, elétrica, mecânica, química, industrial, etc. Nestes empreendimentos que utilizam a madeira como base, também é necessário um profissional habilitado para verificar sua procedência, atestar sua condição fito-sanitária, para a classificação e secagem da madeira, sua seleção conforme parâmetros físico-químicos mais adequados ao processo de produção, técnicas de otimização de uso e aproveitamento, utilização de resíduos e outras práticas que reduzam o desperdício da matéria-prima, significando a necessidade do corte de menor número de árvores.

A necessidade de matéria-prima não é a principal causa do desmatamento. O mercado interno já abastece 70% do seu consumo de madeira através das florestas plantadas. A Ciência Florestal brasileira evoluiu muito nos últimos 40 anos, e todo este desenvolvimento aliado às nossas condições edafo-climáticas nos proporcionam um incremento médio anual de 40 m3 por hectare. Hoje, através da celulose poderemos produzir 55 mil litros de etanol por hectare, contra 6 mil da cana, e mil da soja ou do gira-sol, onde o profissional habilitado é fundamental para garantir a produtividade, o melhor aproveitamento da área, minimizando potenciais impactos e externalidades. Estes plantios florestais precisam ser licenciados junto ao órgão competente, e também necessitam de RT. Logo, basta ao Crea fazer gestão junto à estes órgãos para que a ART seja de fato uma condição ao licenciamento, já que legalmente é obrigatória à toda atividade técnica.

A principal causa do desmatamento é a ocupação e conversão dos ecossistemas florestais para outros fins, basicamente para dar espaço às atividades econômicas mais variadas e/ou para habitação. E nestes casos os impactos são bem maiores, pois o objetivo é retirar a floresta, ocupando o espaço e impedindo sua auto-regeneração. Geralmente há utilização de queimadas criminosas, as áreas afetadas são bem maiores, e o impacto à fauna é implacável. Mas desmatamento não acontece apenas “lá no interior da Amazônia”, ocorre no Cerrado, na Caatinga, no Rio de Janeiro, por exemplo, podemos ver a Mata Atlântica sendo desmatada nas margens de estradas, nos topos de morros e encostas, etc.

Quem mais converte áreas é a agricultura, onde cabe à todos os órgãos de assistência, de financiamento, e todas as instituições voltadas para este setor pactuarem a preservação das Reservas Legais e APPs das propriedades, trabalharem para que não haja mercado para produtos produzidos através da devastação das florestas. Ao Crea, cabe garantir que haja um Engenheiro Agrônomo como responsável técnico na agricultura em larga escala. Nas áreas convertidas para a habitação e outras obras civis, geralmente já visitadas pela fiscalização do Crea, seria cabível também exigir a ART sobre o processo de licenciamento e execução da remoção da vegetação.

Não há dúvidas de que em nossas florestas está o maior patrimônio brasileiro. Além da manutenção do equilíbrio ambiental e da produção de água, essencial à vida, elas nos oferecem matéria-prima para o desenvolvimento, para a geração de renda e postos de trabalho, para a produção de alimentos e bens de consumo. Por tratar-se de recurso renovável, pode sim ser utilizada de forma sustentável, ajudando a diminuir as desigualdades sociais, ao mesmo tempo em que é conservada para as futuras gerações. Para tanto é preciso garantir à sociedade que qualquer intervenção nestes ecossistemas só seja feita utilizando-se de toda a tecnologia existente para proporcionar esta sustentabilidade, e com a devida anotação de responsabilidade do profissional competente. Os Engenheiros Florestais têm muito que contribuir neste processo, e estamos dispostos a colaborar não apenas tecnicamente, mas também junto aos Creas para efetivar a fiscalização do exercício profissional nesta área, tendo em vista que dos 27 Conselhos Regionais apenas 2 possuem Câmaras Especializadas de Engenharia Florestal. Como profissionais, lutaremos pela criação destas Câmaras.

Como consumidores de produtos e serviços, todos nós devemos ter a preocupação em adquirimos apenas produtos que utilizem matéria-prima com origem certificada e que sejam fabricados através de processos produtivos comprovadamente viáveis do ponto de vista sócio-ambiental. E somente serviços que tenham responsável técnico e a respectiva ART. Esta é a nossa garantia, não apenas de que o trabalho seja feito por quem entende, mas também de que há um profissional responsabilizando-se pela qualidade do serviço contratado. Como cidadãos devemos cobrar a atuação dos órgãos ambientais, assim como aos demais em suas áreas de abrangência.

Este deve ser um compromisso de todos, cabe à cada um reduzir a sua parcela do desmatamento, assumindo a sua parcela nesta responsabilidade.

* É presidente da Sociedade Brasileira de Engenheiros Florestais – SBEF, vice-presidente da Federação das Associações de Engenheiros e Arquitetos do Estado do Rio de Janeiro, e membro da Comissão Nacional de Florestas – CONAFLOR / MMA.

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